sexta-feira, 9 de março de 2012

Dificuldade de prever o comportamento de qualquer pessoa, o nosso inclusivamente

Sendo variável o nosso “eu”, que é dependente das circunstâncias, um homem jamais deve supor que conhece outro. Pode somente afirmar que, não variando as circunstâncias, o procedimento do indivíduo observado não mudará. O chefe de escritório que já redige há vinte anos relatórios honestos, continuará sem dúvida a redigi-los com a mesma honestidade, mas cumpre não o afirmar em demasia. Se surgirem novas circunstâncias, se uma paixão forte lhe invadir a mente, se um perigo lhe ameaçar o lar, o insignificante burocrata poderá tornar-se um celerado ou um herói. As grandes oscilações da personalidade observam-se quase exclusivamente na esfera dos sentimentos. Na da inteligência, elas são muito fracas. Um imbecil permanecerá sempre imbecil.

As possíveis variações da personalidade, que impedem de conhecermos a fundo os nossos semelhantes, também obstam a que cada qual se conheça a si próprio. O adágio “Nosce te ipsum” dos antigos filósofos constitui um conselho irrealizável. O “eu” exteriorizado representa habitualmente uma personalidade de empréstimo, mentirosa. Assim é, não só porque atribuímos a nós mesmos muitas qualidades e não reconhecemos absolutamente os nossos defeitos, como também porque o nosso “eu” contém uma pequena porção de elementos conscientes, conhecíveis em rigor, e, em grande parte, elementos inconscientes, quase inacessíveis à observação.

O único meio de descobrir o nosso “eu” real é, já o dissemos, a acção. Cada qual só se conhece um pouco depois de ter observado a sua maneira de agir em circunstâncias determinadas. Pretender adivinhar como procederemos numa situação dada é muito quimérico. O marechal Ney, quando jurou a Luis XVIII que lhe traria Napoleão numa gaiola de ferro, estava de muito boa fé, mas não se conhecia; um simples olhar do Imperador bastou para que mudasse a sua resolução; o infortunado marechal pagou com a vida a ignorância da sua própria personalidade. Se estivesse mais familiarizado com as leis da psicologia, Luiz XVIII ter-lhe-ia provavelmente perdoado.
As teorias expostas nesta obra relativamente ao caráter podem, por vezes, parecer contraditórias. De um lado, com efeito, insistimos na fixidez dos sentimentos que formam o carácter e, de outro, mostramos as variações possíveis da personalidade.
Essas oposições irão dissipar-se rememorando os pontos seguintes:

1º Os carácteres formam-se a partir de um agregado de elementos afectivos fundamentais, mais ou menos invariáveis, aos quais se juntam elementos acessórios, facilmente mutáveis. Estes últimos correspondem às modificações que a arte do criador aplica a uma espécie, sem modificar por isso os seus carácteres essenciais;

2º As espécies psicológicas acham-se, como as espécies anatómicas, sob a estreita dependência do meio. Devem adaptar-se a todas as mudanças desse meio e a ele, de facto, se adaptam, quando essas transformações não são consideráveis em extremo nem demasiadamente súbitas;

3º Os mesmos sentimentos podem oferecer a aparência de uma mudança quando se aplicam a assuntos diferentes, sem que, entretanto, haja sofrido modificação na sua natureza real. Tornando-se amor divino em certas conversões, o amor humano é um sentimento que mudou de nome, mas não de natureza.
Todas essas averiguações têm um interesse muito prático, porquanto se acham na própria base de muitos problemas modernos importantes, principalmente o da educação.
Observando que a educação modifica a inteligência ou, pelo menos, a soma dos conhecimentos individuais, concluiu-se que ela podia modificar igualmente os sentimentos. Era esquecer por completo que os estados afectivos e intelectuais não apresentam uma evolução paralela.

Quanto mais se aprofunda o assunto, tanto mais firmemente se reconhece que a educação e as instituições políticas desempenham um papel bastante fraco no destino dos indivíduos e dos povos. Essa doutrina, contrária, aliás, às nossas crenças democráticas, parece, por vezes, contrariada também pelos factos observados em certos povos modernos, e é isso que sempre a impedirá de ser facilmente admitida.

Gustave Le Bon, in "As Opiniões e as Crenças"

4 comentários:

  1. vc esta de parabens
    curti seu blogger
    http://contosdagarotameroko.blogspot.com

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  2. "Conhecermo-nos a nós próprios." (Oráculo Grego) Mas, como aprender a conhecer o que na realidade somos?

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  3. Shou, acho que as vezes o pensamento não domina a ação. Então somos o que quizermos ser.

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